sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Sobre o sistema orçamentário de financiamento, por Che Guevara


Em fevereiro de 1964, a revista “Nuestra Industria”, do Ministério da Indústria da República de Cuba, publicou um artigo notável, “Sobre el sistema presupuestario de financiamiento”. Seu autor era o próprio ministro, Ernesto Che Guevara.
Era uma época bastante difícil para os revolucionários, apesar das vitórias conquistadas desde o fim da II Guerra Mundial. Na URSS, com Kruschev, naquele momento – e desde antes do XX Congresso do PCUS, mas sobretudo depois dele – afirmava-se que o mercado e a lei do valor eram intrínsecas ao socialismo, isto é, a todo o período de transição para o comunismo. Hoje, quando podemos ver para onde essa concepção mercantiflera conduziu a URSS e os países do Leste europeu, é fácil perceber que se tratava apenas de rendição diante do capitalismo – o externo, encabeçado pela casta dominante nos EUA, que promovia então uma bilionária, raivosa e chantagista campanha contra a URSS, e os elementos internos atrasados, que resistiam a avançar na construção de uma sociedade coletivista.
Porém, em 1964, isso era muito difícil de ser percebido. Sobretudo para um dirigente de um país bloqueado, agredido militarmente pelos EUA, e aliado da URSS, era difícil dizê-lo. Mas Che encontrou o caminho.
Durante meses, Che estudou os clássicos do marxismo e toda a literatura econômica que pôde obter. Nessa época, o debate em Cuba se intensificava – era um problema prático: como desenvolver o país de forma socialista. Foi isso que o levou às questões teóricas do marxismo sobre a construção do socialismo. Nesse debate, participou o economista francês Charles Bettelheim, defensor do “cálculo econômico”, criticado neste artigo por Che.
A questão pode ser resumida da seguinte forma: pode o socialismo pleno, que é uma sociedade coletivista, ter uma economia de base mercantil, ou seja, individualista, tal como o capitalismo? Colocada a questão dessa forma, a resposta parece óbvia. No entanto, era isso, basicamente, o que defendiam os adeptos do ‘’cálculo econômico” - que as relações entre as empresas de propriedade do povo, assim como entre as empresas e os consumidores, fosse necessariamente através do mercado.
Como observa Che, as relações mercantis são um entrave ao plano, à planificação econômica coletiva, que é a expressão da consciência humana, sem a qual é impossível transitar para o comunismo, chamado por Marx de “o reino da liberdade” - ou, na formulação de Stalin, um estágio da Humanidade em que o homem, ao invés de ser dominado pela economia como por forças cegas da natureza, passa a dominar a economia em prol da satisfação de suas necessidades e anseios materiais e espirituais.
Nos “Problemas Econômicos do Socialismo na URSS”, Stalin, poucos meses antes de seu falecimento, em 1953, havia criticado o projeto para um “Manual de Economia Política”, da Academia de Ciências da URSS, pela introdução de contrabandos mercantis na teoria da construção do socialismo. Em 1964, é o mesmo Manual que Che critica, na mesma direção, embora seja provável que não tenha tido acesso ao livro de Stalin (o livro de Stalin que Che cita na introdução deste artigo é “Fundamentos do Leninismo”). Não é uma surpresa, mas é sempre interessante observar como esses dois revolucionários chegam, no essencial, às mesmas conclusões. Especialmente sobre uma questão fulcral, o problema da lei do valor no socialismo – uma conseqüência das relações de mercado ainda sobreviventes ao iniciar-se a construção do socialismo.
No último dia 8, fez 41 anos que Che tombou na Bolívia, lutando pela liberdade e independência de todos os povos do mundo. Sua luta floresce hoje, de diferentes formas, a começar pela própria Bolívia, onde a revolução do presidente Evo Morales avança sobre a sabotagem oligárquica. Mas também nos outros países da América Latina, com Lula, Hugo, Cristina e outros líderes – e, em outros continentes, como no Congo, país no qual o Che lutou apenas um ano após escrever este artigo.
A publicação destes trechos de “Sobre el sistema presupuestario de financiamiento” é a nossa homenagem a quem, como já se disse de outros, e com mais razão se poderia dizer dele, era um homem como poucos. C.L.

“A planificação centralizada é o modo de ser da sociedade socialista”

Entre o cálculo econômico e o sistema orçamentário de financiamento há diferenças de distintos graus.
A diferença mais imediata surge quando falamos da empresa. Para nós uma empresa é um conglomerado de fábricas ou unidades que têm uma base tecnológica parecida, um destino comum para sua produção, ou, em algum caso, uma localização geográfica limitada; para o sistema de cálculo econômico, uma empresa é uma unidade de produção com personalidade jurídica própria. Uma central açucareira é uma empresa para aquele método, e, para nós, todas as centrais açucareiras e outras unidades relacionadas com o açúcar constituem a Empresa Consolidada do Açúcar.
Outra diferença é a forma de utilização do dinheiro; em nosso sistema ele só opera como dinheiro aritmético, como reflexo, em preços, da gestão da empresa, que os organismos centrais analisarão para efetuar o controle de seu funcionamento; no cálculo econômico ele não é só isso, mas também meio de pagamento que atua como instrumento indireto de controle, já que são esses fundos os que permitem operar a unidade, e suas relações com o banco são similares às de um produtor privado em contato com bancos capitalistas, aos quais deve explicar exaustivamente seus planos e demonstrar sua liquidez.
Em conseqüência do modo de utilizar o dinheiro, nossas empresas não têm fundos próprios; no banco existem contas separadas para sacá-los e depositá-los, a empresa pode sacar fundos, segundo o plano, da conta geral de gastos, e da especial, para pagar salários, mas ao efetuar um depósito, este passa para o poder do Estado automaticamente.
As empresas da maioria dos países irmãos têm fundos próprios nos bancos, que reforçam com créditos dos mesmos, pelos quais pagam juros, sem esquecer nunca que esses fundos próprios, como os créditos, pertencem à sociedade, expressando em seu movimento o estado financeiro da empresa.
Quanto às normas de trabalho, as empresas do cálculo econômico usam o trabalho normatizado por tempo e o trabalho por peça ou por hora (por encomenda); nós estamos tratando de levar todas as nossas fábricas para o trabalho normatizado por tempo, com prêmios por superação da norma.
Partindo de que em ambos os sistemas o plano geral do Estado é a máxima autoridade, podem-se sintetizar analogias e diferenças operativas, dizendo que a autogestão se baseia num controle centralizado global e uma descentralização mais aguçada, se exerce o controle indireto mediante o rublo, pelo banco, e o resultado monetário da gestão serve como medida para os prêmios; o interesse material é a grande alavanca que move individual e coletivamente aos trabalhadores.
O sistema orçamentário de financiamento se baseia num controle centralizado da atividade da empresa; seu plano e gestão econômica são controlados por organismos centrais, em uma forma direta, não tem fundos próprios nem recebe créditos bancários, e usa, de forma individual, o estímulo material, vale dizer, os prêmios e penalidades monetárias individuais e, em seu momento, usará os coletivos, mas o estímulo material direto está limitado pela forma de pagamento da tarifa salarial.
Sobre a lei do valor
Uma diferença profunda (pelo menos no rigor dos termos empregados) existe entre a concepção da lei do valor e da possibilidade de seu uso consciente, colocada pelos defensores do cálculo econômico, e a nossa.
Diz o Manual de Economia Política:
“Por oposição ao capitalismo, onde a lei do valor atua como uma força cega e espontânea, que se impõe aos homens, na economia socialista se tem consciência da lei do valor e o Estado a tem em conta e a utiliza na prática da direção planificada da economia.
“O conhecimento da ação da lei do valor e sua inteligente utilização ajudam necessariamente aos dirigentes da economia a proces sar racionalmente a produção, a melhorar sistematicamente os métodos de trabalho e a aproveitar as reservas latentes para produzir mais e melhor.”
As palavras grifadas por nós indicam o espírito dos parágrafos.
A lei do valor atuaria como uma força cega, mas conhecida e, portanto, moldável, ou utilizável pelo homem.
Mas esta lei tem algumas características:
Primeiro: está condicionada pela existência de uma sociedade mercantil.
Segundo: seus resultados não são suscetíveis de medição a priori e devem refletir-se no mercado em que intercambiam produtores e consumidores.
Terceiro: é coerente em um todo que inclui mercados mundiais e trocas, e distorções em alguns ramos de produção se refletem no resultado total.
Quarto: dado seu caráter de lei econômica, atua fundamentalmente como tendência, e, nos períodos de transição, sua tendência deve ser, logicamente, desaparecer.
Alguns parágrafos depois, o Manual expressa:
“O estado socialista utiliza a lei do valor, realizando por meio do sistema financeiro e de crédito o controle sobre a produção e a distribuição do produto social.
“O domínio da lei do valor e sua utilização em combinação com um plano representam uma enorme vantagem do socialismo sobre o capitalismo. Graças ao domínio sobre a lei do valor, sua ação na economia socialista não leva ao desperdício do trabalho social, inseparável da anarquia da produção própria do capitalismo. A lei do valor e as categorias com ela relacionadas - o dinheiro, o preço, o comércio, o crédito, as finanças – são utilizadas com êxito pela URSS e pelos países de democracia popular, no interesse da construção do socialismo e do comunismo, no processo de direção planificada da economia nacional.”
Isto só pode considerar-se exato quanto à magnitude total de valores produzidos para o uso direto da população e os respectivos fundos disponíveis para sua aquisição, o que poderia fazer qualquer ministro da Fazenda capitalista com umas finanças relativamente equilibradas. Dentro desse marco, todas as distorções parciais da lei cabem.
Mais adiante se aponta:
“A produção mercantil, a lei do valor e o dinheiro só se extinguirão ao chegar a fase superior do comunismo. Entretanto, para criar as condições que façam possível a extinção da produção e da circulação mercantis na fase superior do comunismo, é necessário desenvolver e utilizar a lei do valor e as relações monetário-mercantis durante o período de construção da sociedade comunista.”
Por que desenvolver? Entendemos que durante certo tempo se mantenham as categorias do capitalismo e que seu término não pode se determinar de antemão, mas as características do período de transição são as de uma sociedade que liquida suas velhas amarras para ingressar rapidamente na nova etapa. A tendência deve ser, em nosso conceito, a de liquidar o mais vigorosamente possível as categorias antigas, entre as quais se incluem o mercado, o dinheiro e, portanto, a alavanca do interesse material, ou, melhor dizendo, as condições que provocam a existência das mesmas. O oposto faria supor que a tarefa de construção do socialismo em uma sociedade atrasada, é algo assim como um acidente histórico e que seus dirigentes, para remediar o erro, devem dedicar-se a consolidar todas as categorias inerentes à sociedade intermediária, ficando somente a distribuição da receita de acordo com o trabalho e a tendência a liquidar a exploração do homem pelo homem como fundamentos da nova sociedade, o que por si só é insuficiente como fator do desenvolvimento da gigantesca mudança de consciência necessária para poder afrontar a transição, mudança que deverá operar-se pela ação multifacética de todas as novas relações, da educação e da moral socialista, com a concepção individualista que o estímulo material direto exerce sobre a consciência freando o desenvolvimento do homem como ser social.
Para resumir nossas divergências: consideramos a lei do valor como parcialmente existente, devido aos restos da sociedade mercantil que subsistem, que se refletem também no tipo de troca que se efetua entre o estado fornecedor e o consumidor; cremos que, particularmente em uma sociedade de comércio exterior muito desenvolvido, como a nossa, deve reconhecer-se a lei do valor em escala internacional como um fato que rege as transações comerciais, ainda que dentro do campo socialista, e reconhecemos a necessidade de que este comércio passe já a formas mais elevadas nos países da nova sociedade, impedindo que se aprofundem as diferenças entre os países desenvolvidos e os mais atrasados pela ação do intercâmbio.
Vale dizer, é necessário encontrar fórmulas de comércio que permitam o financiamento dos investimentos industriais nos países em desenvolvimento, ainda que isso venha contra os sistemas de preços existentes no mercado mundial capitalista, o que permitirá o avanço mais paritário de todo o campo socialista.
Negamos a possibilidade do uso consciente da lei do valor, baseado na existência de um mercado livre que expresse automaticamente a contradição entre produtores e consumidores; negamos a existência da categoria mercadoria na relação entre empresas estatais, e consideramos todos os estabelecimentos como parte da única grande empresa que é o Estado (ainda que, na prática, não acontece ainda assim em nosso país).
A lei do valor e o plano são dois termos ligados por uma contradição e sua solução; podemos, pois, dizer que a planificação centralizada é o modo de ser da sociedade socialista, sua categoria definidora e o ponto em que a consciência do homem consegue, por fim, sintetizar e dirigir a economia até sua meta, a plena libertação do ser humano no marco da sociedade comunista.

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