segunda-feira, 1 de outubro de 2007

A agonia do cinema brasileiro



Em 2003 nossos filmes tiveram 22.055.249 espectadores - 21,4% do público que foi ao cinema no Brasil. O número caiu, no ano de 2004, para 16.410.957. Em 2005 foi para 10.744.280, 11,9% do total de espectadores, proporção que seguiu caindo em 2006 e 2007.


Em 2003 o cinema brasileiro foi visto por 22.055.249 espectadores - 21,4% do público que freqüentou as salas de cinema em nosso país. Esse número caiu, no ano de 2004, para 16.410.957 espectadores. Em 2005 despencou para 10.744.280, baixando a um percentual de apenas 11,9% do total de espectadores, proporção que seguiu caindo nos anos de 2006 e 2007. No primeiro semestre deste ano ficamos abaixo da linha dos 10%, atingindo o índice de 9,7%. A situação é grave, mormente porque a única atitude das autoridades do Minc e da Ancine diante da crise tem sido a de reduzir a cota de tela (número de dias para a exibição obrigatório de filmes nacionais, num determinado ano). Em 2004 esta cota era de 63 dias. Para o ano de 2007 ela foi fixada num índice que vai de 28 a 42 dias, conforme o tipo de sala.No dia 20 de agosto, a Abraci (Associação Brasileira de Cineastas) e a Apaci (Associação Paulista de Cineastas) enviaram à Ancine e ao Ministério Público uma carta denunciando a ocupação descontrolada e abusiva das salas de cinema por apenas três títulos produzidos por Hollywood.A carta revela que:“No dia 4 de maio, este filme (‘Homem Aranha 3’) ocupou 869 telas de cinema, o que representa aproximadamente 42% do nosso mercado. O mesmo filme foi lançado nos Estados Unidos com 4.252 cópias, em um universo de 39.668 salas, o que equivale a aproximadamente 11% daquele mercado. Duas semanas depois, quando o filme ‘Piratas do Caribe 3’ estreou em 789 salas, os dois filmes juntos ocuparam mais de 70% das telas. Em seguida, ‘Shrek 3’ foi lançado com 705 cópias. Somente estes três títulos ocupavam mais de 80% do mercado brasileiro de salas de cinemas.Uma vez que o Brasil é signatário de acordo internacional em defesa da diversidade cultural, tal forma de ocupação do mercado, além de predatória é evidente violação desse tratado. Além disso, a produção cinematográfica brasileira vem sofrendo como nunca os efeitos nocivos da concorrência extremamente desigual com a indústria estrangeira, que se inicia pela gigantesca concentração de recursos investidos em promoção e marketing, e se consuma na ocupação abusiva do mercado quando do lançamento de filmes com número de cópias claramente desproporcional.”E conclui afirmando:“Entendemos que o Brasil dispõe de instrumentos legais e de instituições, como a Ancine, que devem ser acionadas em defesa do interesse nacional e do consumidor, ameaçados pela ocupação abusiva de nosso mercado exibidor por algumas poucas produções audiovisuais estrangeiras, em flagrante prejuízo não só da produção nacional, mas principalmente da diversidade de oferta cultural para o consumidor brasileiro. Asseguramos à Ancine todo o nosso apoio a medidas que venham a ser tomadas no sentido de impedir a consolidação desta situação, e informamos que uma cópia desta carta será entregue ao Ministério Público.”Hoje, no Brasil, o mercado de distribuição de filmes está sob controle de cinco monopólios norte-americanos. Em 2005 a Warner, Buena Vista (Columbia Tristar), Fox, UIP e Sony açambarcavam 86% desse mercado. É dispensável comentar as relações intrínsecas entre essas mega empresas de distribuição e os grandes estúdios responsáveis pela produção de filmes nos EUA. Na maioria dos casos não houve sequer a preocupação de se alterar os nomes. Mais grave ainda é que em 10 anos o mercado de exibição cinematográfica no Brasil sofreu uma transformação profunda. O setor, que chegou a ter um índice de nacionalização de praticamente 100%, hoje se verga sob o peso de duas redes americanas, a Cinemark (350 salas) e a UCI (153 salas, se contarmos as 30 UCI-Ribeiro e as 12 UCI-Orient - expediente utilizado pela multinacional para penetrar no Nordeste através de joint ventures).Em 2001 essas duas redes somadas absorveram 22,4% do público que freqüentou cinemas no Brasil. Em 2003 passaram a 30,5%. Em 2005 chegaram a 37,4%. Em 2007, segundo suas expectativas, devem ultrapassar a casa dos 50%.Não é segredo que a agressividade revelada por produtores, distribuidores e exibidores americanos em relação ao mercado externo tem por objetivo ampliar o espaço para seus filmes e não para as cinematografias locais. Em 2003, 65% das receitas da indústria cinematográfica americana provinham do mercado externo e apenas 35% de seu próprio mercado.Trata-se de uma praga mundial que explica em boa medida a razão pela qual os EUA se recusam a ratificar o tratado internacional sobre a diversidade cultural, a que se refere a carta da Abraci e Apaci.Quem se der ao trabalho de passar os olhos sobre a situação dos demais países verá que a monopolização do mercado pelas distribuidoras e pelas redes de exibição norte-americanas se constitui na regra e não na exceção, o que tem levado cinematografias outrora fortes, mas que não conseguiram ser suficientemente defendidas pelos respectivos governos, a uma situação de penúria.Dados de 2003, sobre a ocupação de seus próprios mercados pelos filmes nacionais dão uma idéia do tamanho do prejuízo provocado pela truculência hollywoodiana sobre os mercados alheios: Inglaterra (16%), Itália (22%), Espanha (16%), Alemanha (18%), Suécia (20%), Rússia (4%), Polônia (11%), Japão (33%), México (6%), Argentina (10%), Chile (12%), Austrália (4%), Canadá (3%), Turquia (6%), África do Sul (6%), Portugal (3%).Mas antes de tirarmos algumas conclusões sobre a natureza do problema que nos assola é interessante observar como o público dos filmes brasileiros tem se distribuído pelo conjunto dos lançamentos, pois isso revela outros aspectos de um quadro profundamente injusto, perverso e desastroso para o futuro da atividade cinematográfica no país.Tomemos como referência o ano de 2005, cujos dados estão consolidados.Dos 10.744.280 espectadores, a metade - precisamente 5.319.677 - foi absorvida por um único filme: ”Dois Filhos de Francisco”. A película traz em sua ficha técnica como produtores a Columbia Tristar Filmes do Brasil e a Globo Filmes, associadas à Conspiração Filmes e à ZCL Produções Artísticas. Rendeu nas bilheterias R$ 36.728.278,00. Foi distribuída pela Columbia Tristar e cantada em verso e prosa, antes, durante e depois de seu lançamento, por vasta campanha publicitária em diversos veículos, especialmente da rede Globo de Televisão, proprietária da Globo Filmes. Mesmo assim, recebeu a fundo perdido, para cobrir despesas de produção, verbas pertencentes ao Estado brasileiro no valor de R$ 5.471.000,00, através da Conspiração Filmes, já que a Columbia e a Globo estão proibidas de captar diretamente para a produção cinematográfica recursos provenientes de incentivos fiscais oriundos da lei Rouanet e da lei do Audiovisual – só empresas nacionais ditas independentes dedicadas exclusivamente à produção estão credenciadas para isso.O segundo filme brasileiro de maior bilheteria em 2005 foi “Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida”, com 1.331.652 espectadores. Rendeu R$ 7.108.730,00. Sua ficha técnica traz como produtores a Warner e a Globo Filmes em parceria com a Diler & Associados e Xuxa Produções e Promoções Artísticas. A Diler recebeu em nome dos demais produtores R$ 3.094.049,80 de recursos do Estado, provenientes das leis de incentivo fiscal à cultura, para cobrir as despesas deste projeto cujo valor cultural, como se sabe, é repleto de significados.Qualquer semelhança com o caso anterior não é mera coincidência. Este padrão de associação, uma distribuidora americana, a Globo Filmes e uma empresa “independente”, que legalmente possa receber os recursos provenientes das leis Rouanet e do Audiovisual, tem se repetido de forma até monótona nas maiores bilheterias de cada ano.Só para lembrar algumas: “Xuxa e os Duendes” (2001 - 2.394.326 espectadores), Warner, Globo Filmes, Diler; “A Partilha” (2001 - 1.449.411 espectadores) Columbia, Globo Filmes, Lereby; “Xuxa e os Duendes 2” (2002 - 2.657.091 espectadores), Warner, Globo Filmes, Diler; “Didi o Cupido Trapalhão” (2003 - 1.758.579 espectadores), Columbia, Globo Filmes, Diler; “Maria, Mãe do Filho de Deus (2003 – 2.322.390 espectadores), Columbia, Globo Filmes, Diler; “Lisbela e o Prisioneiro” (2003 – 3.169.890 espectadores), Fox, Globo Filmes, Natasha; “Casseta e Planeta, a Taça” (2003 – 687.967 espectadores), Warner, Globo Filmes, Conspiração Filmes, Organizações Tabajara; “Xuxa Abracadabra” (2004 - 2.214.451 espectadores), Warner, Globo Filmes, Diler; “Sexo, Amor e Traição” (2004 - 2.219.423 espectadores), Fox, Globo Filmes, Total Entertainment; “Cazuza” (2004 – 3.082.522 espectadores), Columbia, Globo Filmes, Lereby, Cineluz; “Didi o Caçador de Tesouros” (2006 – 1.204.732 espectadores), Columbia, Globo Filmes, Diler; “Se Eu Fosse Você” (2006 - 3.644.956 espectadores) Fox, Globo Filmes, Lereby, Total Entertainment.Antes de prosseguirmos é necessário registrar que o responsável pela Lereby é o sr. João Carlos Daniel, mais conhecido como Daniel Filho, cujos vínculos com a Globo são públicos e notórios. Outro dado interessante é que o sr. Diler Trindade, especializado na produção de filmes da Xuxa e de Renato Aragão, amealhou entre 1997 e 2005 para seus valiosos projetos culturais (no site da Ancine não estão disponíveis os dados sobre 2006 e 2007), só de recursos públicos (excluída a renda das bilheterias), a módica quantia de R$ 68.956.727,51 – um pouco mais do que os R$ 57.445.580,21 arrecadados pela Conspiração Filmes, no mesmo período. Aliás, é só consultar o quadro da distribuição dos recursos da lei Rouanet e da lei do Audiovisual para ver que eles têm se dirigido crescentemente para esse tipo de “produtores”.Mas voltemos ao ano de 2005. O segundo filme brasileiro mais assistido, “Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida”, foi lançado com 300 cópias. A média de público por cópia foi de 4.438 espectadores. O terceiro, ”O Casamento de Romeu e Julieta” (Columbia, LCBarreto & Filmes do Equador), lançado com 215 cópias, teve 4.508 espectadores por cópia. O quarto, “Tainá 2 (Columbia, Globo Filmes, Tietê), lançado com 164 cópias, teve 4.807 espectadores por cópia. Já o documentário “Vinicius”, lançado no mesmo ano, com apenas 32 cópias, apresentou uma média superior: 6.425 espectadores por cópia. “Cinema, Aspirina e Urubus”, lançado com 17 cópias, chegou a 4.128 espectadores por cópia. “Quanto Vale Ou É por Quilo?”, lançado com 7 cópias, apresentou a média de 4.694 espectadores por cópia. “Vida de Menina”, lançado com 5 cópias, teve 5.528 espectadores por cópia. “Extremo Sul”, lançado com apenas 3 cópias, teve a média de 4.455 espectadores por cópia.Esses números contradizem o mito de que os filmes de maior bilheteria são aqueles que estão mais sintonizados com o gosto e o interesse do público. Na verdade, o gosto e o interesse do público - que também estão longe de serem imunes à manipulação - servem pouco para definir o total de espectadores de um filme, em situações de mercado monopolizado. O número de cópias – a quantidade de salas onde ele é exibido - e o volume de publicidade que o acompanha são os elementos chave na determinação desse número. No caso, não é a procura que decide a oferta, mas exatamente o contrário.Espremidos num gueto, quando não contam em seu lançamento com a benção de uma das cinco grandes distribuidoras americanas, a maioria dos filmes brasileiros se encontra privada do direito de chegar às telas e por decorrência ao público.Em 2005, dos 41 lançamentos, 15 tiveram entre 1 e 5 cópias; 9 ficaram entre 6 e 20 cópias; 6 entre 21 e 35 cópias. E apenas 1 entre 36 e 100 cópias. Os 10 exibidos com mais de 100 cópias ficaram com 90% dos 10.744.280 espectadores.O fato de o governo ter regulamentado o artigo 3º da lei do Audiovisual, permitindo às distribuidoras estrangeiras abaterem 70% do imposto de renda sobre a remessa de lucros para “investir” na produção de filmes brasileiros, apenas aumentou o poder das majors de manipular o mercado. Isso lhes possibilita, sem custo algum, invadir e ocupar também a cota de tela com as suas produções.Fora dos dias reservados obrigatoriamente à exibição de filmes nacionais, elas ocupam o mercado com os blockbusters e outros produtos enviados pela matriz. Dentro da cota de tela elas se associam à Globo Filmes, que garante a mídia, e a produtores locais, com vocação para servirem de laranjas, que captam os recursos públicos oriundos da lei Rouanet e da lei do Audiovisual para as produções “conjuntas”.Assim, enquanto a cota de tela não cai a zero elas faturam algum por dentro da cota. Mas o pior é ter posto nas mãos de inimigos jurados da cota de tela uma arma com tamanho poder de desorganizar a cinematografia nacional. O método é simples: elevar a cada ano meia dúzia de filmes produzidos nesse esquema à condição de “campeões de bilheteria”. O resultado é garantido: a proporção de espectadores de filmes brasileiros caiu 55% em três anos e meio.O Minc e a Ancine tem permitido, difícil acreditar que apenas pelo gosto da omissão, a mais absoluta perversão dos mecanismos de fomento à produção e de proteção ao mercado nacional.É isso que acontece quando só se fala em destinar à produção cultural mais e mais recursos públicos, que por sinal estão fazendo muita falta na saúde e na educação, sem definir critérios de relevância cultural e principalmente sem levar em conta a necessidade de defender o mercado da ação de poderosas forças monopolistas externas que estão empenhadas não numa simples disputa, mas numa guerra comercial de vida ou de morte para impor ao mundo o seu audiovisual.O fato é que o Estado liberou a fundo perdido, de 1995 a 2005, a quantia de R$ 1.504.526.644,71 para a produção cinematográfica nacional. E o cinema brasileiro não está conseguindo ocupar, em 2007, 10% de seu próprio mercado.A quase totalidade desses recursos se divide entre filmes que são condenados ao ostracismo no ato de seu próprio lançamento, pelo número ridículo e humilhante de cópias que não permite que ninguém os veja, e filmes cuja relevância para a cinematografia nacional é no mínimo discutível, mas que têm servido para promover o enriquecimento de uma pequena fauna de arrivistas, enquanto interessar às majors esse esquema de associação.Mais do que de recursos públicos para a produção, o que o filme brasileiro necessita é contar com uma rede de distribuição nacional, que possa fazer frente às distribuidoras americanas, com uma rede de exibição nacional dentro da mesma característica e com cotas de tela decentes - não só para os cinemas, mas também para a televisão. E rápido, antes que seja tarde.O samba, cantou mestre Nelson Sargento, agoniza mas não morre. Menos enraizado em nossa cultura, o cinema brasileiro, apesar do que já foi capaz de mostrar em épocas mais inspiradas, não tem esse condão.

Um comentário:

UMESA disse...

Publicado originalmente em www.horadopovo.com.br