segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Das dificuldades de Obama.


Dois artigos publicados na Hora do Povo - edições 2.739 e 2.740.


1.

Em seu discurso de posse, o presidente Obama afirmou: “Estamos prontos para liderar mais uma vez”.Sabemos que não é fácil ser presidente de um país em que faz parte da cultura abater a tiros presidentes e personalidades influentes que não se ajustam bem ao figurino concebido por suas classes dominantes.Mas não podemos deixar de registrar que o pensamento exposto, longe de sintonizar as melhores tradições americanas, evoca as piores.Em 1909, quando assumiu o governo, o presidente Howard Taft declarou: “Todo o hemisfério ocidental nos pertencerá, de fato, devido à superioridade de nossa raça, pois moralmente já nos pertence”.Mas não foi ele quem inventou a receita. Naquela altura do campeonato, os EUA haviam efetuado 31 intervenções militares no hemisfério: Porto Rico, Argentina, Peru, México, Nicarágua, Uruguai, Panamá, Colômbia, Cuba, República Dominicana e Honduras já haviam provado o gosto amargo desse desejo de liderança “moral”.Na verdade, a idéia de que os EUA têm por missão liderar é muito antiga. É inclusive anterior à formação do capital monopolista que, como a história já demonstrou à exaustão, empurra seus respectivos Estados nacionais para além das fronteiras a fim de que ele possa servir de suporte à conquista de novos mercados, que absorvam o capital excedente, e ao controle das fontes de matérias primas.O presidente James Buchanan (1857-1861) afirmava: “A expansão dos EUA sobre o continente americano, desde o Ártico até a América do Sul, é o destino de nossa raça. E nada pode detê-lo”. E ele, por sua vez, estava ancorado a uma sólida tradição de expansionismo que já havia custado ao México boa parte de seu território.O New Orleans Creole Courier, em 1855, expressava a idéia nos seguintes termos: “A pura raça anglo-americana está destinada a estender-se por todo o mundo com a força de um tufão. A raça hispano-mourisca será batida”.Em julho 1845, o jornalista John O‘Sullivan cunhou o termo “Destino Manifesto”, num editorial do United States Magazine and Democratic Review, como expressão sintética do dogma corrente de que, sendo o povo dos EUA eleito por Deus para comandar o mundo, o expansionismo seria apenas decorrência do cumprimento da vontade Divina.Ele achava natural afirmar que “o Texas foi absorvido pela União no processo de cumprimento da lei geral que está levando nossa população em direção ao Oeste. Ele foi arrancado do México de acordo com o curso natural dos eventos. O braço avançado do irresistível exército da emigração anglo-saxônica já começou a se estender sobre a Califórnia”.Artistas e intelectuais não estiveram imunes à crença.Em 1849, o escritor Herman Meville (Moby Dick) afirmava: “Nós americanos somos um povo peculiar, escolhido, o Israel de nosso tempo; carregamos a arca das liberdades do mundo. O resto das nações precisa, brevemente, estar na nossa retaguarda”.Antes disso, o poeta Walt Withman havia expressado o mesmo ideal sem maior preocupação com a sutileza: “O que tem a ver esse México miserável e ineficiente – com suas superstições, com sua paródia de liberdade, sua tirania real de poucos sobre muitos – que tem ele a ver com a grande missão de povoar o novo mundo com uma raça nobre? Que seja nosso lograr essa missão”.Caminhando um pouco mais em direção à origem da crença, vamos encontrar em Emerson – celebrado como grande pensador e filósofo naquele país - a seguinte reflexão: “Certamente, a forte raça britânica, que já conquistou grande parte desse território, deve também apoderar-se daquele pedaço [Texas], e do México e do Oregon, e, com o passar das eras, os métodos segundo os quais isso foi feito será de pouca importância. A América é o último esforço da divina providência em favor da raça humana”.Portanto, antes mesmo que o capital monopolista se formasse nos EUA e impulsionasse a expansão imperialista, a burguesia americana havia associado o seu destino ao expansionismo. Ampliar as bases para o desenvolvimento capitalista, que interessava ao Norte, sem desestruturar as relações escravistas e os vínculos do Sul com a economia inglesa, seria resolvido através da conquista de novos territórios, associada à imigração maciça de colonos europeus.Tal era o projeto que levava, em 1828, o representante dos EUA na Colômbia, Beaufort Watts, a fazer considerações pouco diplomáticas sobre o povo do país: “O colombiano típico é um animal obediente que se torna ainda mais submisso quando castigado”. Ou Quincy Adams a afirmar, em 1823, dois anos antes de assumir a presidência da República: “Estas ilhas [Cuba e Porto Rico] são apêndices naturais do continente norte-americano, e uma delas - quase visível a olho nu de nossas costas - tornou-se por muitas considerações um objeto de importância transcendental para os interesses políticos e comerciais da nossa União. É difícil resistir à convicção de que a anexação de Cuba por nossa república Federal será indispensável à continuidade e à permanência de nossa própria União”. Ou, ainda, Alexander Scott, representante dos EUA na Venezuela, a dizer em carta a James Monroe (“A América para os americanos” – do Norte), em 1812, um ano após a revolução contra o domínio espanhol, liderada por Miranda: “O povo do país é tímido, indolente, ignorante, supersticioso, incapaz de esforço e desprovido de iniciativa”.O segundo presidente dos EUA, John Adams, que foi vice de George Washington, dizia em carta a Thomas Jefferson: “Um governo livre e a religião católica romana não poderão jamais coexistir, em qualquer país. Qualquer projeto de conciliar essas duas coisas na velha ou na nova Espanha é utópico, platônico e quimérico. E é do meu entendimento que na nova Espanha as coisas são piores, se isso é possível”.Não é à-toa que seu filho, Quincy Adams, tenha escrito em seu diário, aos 12 anos de idade: “Os espanhóis são vadios, sujos e malvados, em suma, seria justo compará-los a uma vara de porcos”.Obama desconhece isso? É claro que não.A maior tragédia que se abateu sobre os EUA foi o encontro dessa ideologia expansionista e racista com os interesses dos monopólios. Produziu um imperialismo cretino, encardido e difícil de erradicar.Mas, numa avaliação otimista, talvez possamos dizer que, com essa singela declaração, Obama tenha simulado um recuo para surpreender o adversário pela retaguarda.Às vezes dá certo. Mas quase sempre, não. (S.R.)


2.

O falecido senador norte-americano William Fullbright, durante mais de 30 anos um dos melhores parlamentares dos EUA, disse uma vez que “criamos uma sociedade cuja principal ocupação é a violência. A maior ameaça para o nosso país não é uma qualquer força exterior, mas o nosso próprio militarismo. Temos a amarga impressão de que nós, os americanos, estamos habituados à guerra. Já há muitos anos que, ou bem estamos em guerra ou então prestes a desencadear uma, não importa em que região do mundo. A guerra e o militarismo tornaram-se uma parte inseparável do nosso quotidiano, e a violência o produto principal da nossa economia” (V. seu livro “The Arrogance of Power”).Realmente, a história dos EUA são uma série tão grande de atropelos e agressões a outros países, promovidos por uma casta dominante que já era imperialista antes do surgimento dos monopólios capitalistas (v. nossa edição anterior), que às vezes demanda um esforço que não é pequeno perceber em que aspectos do passado o povo norte-americano pode se basear para construir uma nação irmã - e não algoz - das outras nações e justa para com seus próprios cidadãos.No entanto, esses aspectos, de que o povo norte-americano pode se orgulhar, existem. Por exemplo, em relação a seus presidentes, é verdade que os norte-americanos tiveram na Casa Branca uma quantidade incomum de fariseus (Quincy Adams, Herbert Hoover), trogloditas (James Polk, Theodore Roosevelt) e/ou meras mediocridades (citar um exemplo aqui seria cometer alguma injustiça). Também existiram alguns presidentes que quase poderiam ter sido extraordinários (Woodrow Wilson, John Kennedy), não fossem limitações pessoais ou porque não os deixaram ser.Mas os norte-americanos, apesar disso, tiveram dois grandes presidentes - Abraham Lincoln e Franklin Delano Roosevelt.A esse propósito, é muito positivo que o atual presidente, Barack Hussein Obama, tenha tomado esses dois, justamente os maiores de seus antecessores, como modelo. Mas, para isso, é necessário ser coerente com o que de melhor existe na história dos EUA. Não se podem misturar alhos democráticos com bugalhos imperialistas - sob pena de renunciar à herança dos primeiros.Por exemplo, em seu discurso de posse, Barack homenageou os que “por nós, combateram e morreram, em lugares como Concord e Gettysburg, Normandia e Khe Sanh”.Tudo bem em relação a Concord, Gettysburg e a Normandia. O problema é: o que está Khe Sanh fazendo nessa lista?Concord, no Estado de Massachusetts, foi, em 19 de abril de 1775, o lugar da primeira batalha da guerra de independência contra o domínio inglês. Nessa cidade foi organizada a guerrilha dos “minutemen”, que, apesar da desigualdade de forças, fez o exército britânico recuar para Boston, logo em seguida sitiada, na primeira fase da Revolução Americana.Em Gettysburg, na Pennsylvania, foi travada, durante os três primeiros dias de julho de 1863, a batalha mais gloriosa da história dos EUA e a mais sangrenta da Guerra Civil. Nela, o Exército do Potomac, depois de uma série de derrotas para os escravagistas confederados, com um histórico de generais vacilantes e/ou incompetentes, e com um comandante nomeado, por decisão pessoal de Lincoln, apenas três dias antes - George Meade, o melhor caráter entre todos os generais dessa guerra - barrou a invasão do Norte por parte do general sulista Robert Lee. A batalha de Gettysburg foi a virada na guerra civil, onde até então o exército sulista estava em ofensiva - com a capital do país, Washington, localizada dentro do estado sulista da Virgínia, em perigo. Depois de Gettysburg, nunca mais os sulistas conseguiram sair da defensiva - o que, após a nomeação de Grant, que estabeleceu seu comando geral junto às tropas de Meade, possibilitou, dois anos depois, a vitória da União e o fim do escravismo nos EUA.Gettysburg é também conhecida pelo discurso de Lincoln, o mais notável (e mais ignorado) discurso da história dos EUA, proferido na homenagem aos mortos da batalha, em novembro de 1863. Numa cerimônia para a qual não havia sido convidado - foi promovida pelo governador do Estado - e na qual teve de aguentar mais de duas horas de arenga por parte do orador oficial, um acadêmico contratado pelo governo da Pennsylvania, o presidente Lincoln, em menos de dois minutos, definiu a Guerra Civil como o ponto de partida para uma democracia verdadeira nos EUA: “Somos, antes, nós, os vivos, que devemos consagrar-nos à tarefa inacabada que aqueles que aqui lutaram fizeram avançar tanto e tão nobremente. Somos, antes, nós, os que devemos consagrar-nos aqui à grande tarefa que ainda permanece diante de nós: que, destes mortos aos quais honramos, tomemos e aumentemos nossa devoção à causa pela qual eles deram até a última medida plena de devoção; que resolvamos aqui, firmemente, que estes mortos não morreram em vão; que esta nação, sob Deus, terá um novo nascimento da liberdade; e que o governo do povo, pelo povo, para o povo, não sucumbirá nesta terra”.A Normandia, naturalmente, é a parte da França onde os norte-americanos e os ingleses desembarcaram em 1944, para abrir, finalmente, a segunda frente contra os nazistas. Até então a luta contra Hitler havia sido sustentada, à custa de milhões de mortos, pelo Exército Vermelho - apesar dos vários apelos soviéticos, em especial de Stalin, pela abertura da segunda frente na Europa. É justo observar que o dirigente ocidental mais sensível aos apelos soviéticos foi o presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, que, entre ingleses e americanos, realizou o principal empenho para o desembarque e pela abertura da segunda frente.Nada disso - nem Concord, nem Gettysburg, nem a Normandia - têm algo a ver com Khe Sanh e a agressão ao Vietnã, onde os invasores norte-americanos mataram, segundo seus próprios números (as estatísticas vietnamitas são maiores), 1 milhão e 400 mil vietnamitas, mutilaram 1 milhão e 800 mil - sem contar as vítimas de anomalias genéticas devidas ao “agente laranja”, e outras barbaridades -, apesar de, nem por isso, conseguirem submeter um povo que havia decidido ser livre.Khe Sanh foi, além disso, uma derrota humilhante dos imperialistas, onde o general Giap atraiu os invasores, que esperavam que ele usasse a mesma tática com que, em 1954, derrotara os franceses em Dien Bien Phu. Com a atenção dos norte-americanos concentrada em Khe Sanh, Giap desfechou a ofensiva em todo o sul do Vietnã - que ficou conhecida como “a ofensiva do Tet”, o ano novo lunar da tradição vietnamita, a maior e mais desastrosa derrota militar dos EUA desde a guerra da Coréia.Em Concord, Gettysburg e na Normandia os norte-americanos estavam, realmente, lutando pela liberdade, antes de tudo pela sua liberdade, ainda que também tenham contribuído para a liberdade de outros povos.No Vietnã, as tropas norte-americanas (meio milhão de soldados, uma esquadra inteira e o maior contingente de bombardeiros até então reunido) estavam perpetrando uma agressão imperialista das mais covardes que já houve na história do mundo. Eram hordas que não estavam “combatendo e morrendo” pelos norte-americanos, mas tentando escravizar um país pobre e pequeno, situado a dezenas de milhares de quilômetros dos EUA, e, como esse país não se submetia, tentando apagar seu povo da face da Terra.Naturalmente, levaram o troco - aliás, bastante modesto, comparado ao que sofreu o povo vietnamita para expulsá-los de lá: morreram 60.159 norte-americanos e 300 mil foram feridos. Mas foi uma agressão tão covarde, criminosa - e tão mal sucedida - que o próprio povo norte-americano levantou-se contra ela. Uma agressão, inclusive, ilegal até do ponto de vista dos EUA, pois a Casa Branca, para obter a aprovação parlamentar, mentiu ao Congresso, falsificando o chamado “incidente do golfo de Tonkin”. Tal como na questão da “liderança dos EUA”, abordada em nossa última edição, é impossível que Obama não saiba o que significou a guerra do Vietnã. No entanto, em seu discurso de posse, optou por fazer uma concessão ao belicismo imperialista, misturando coisas que não se podem misturar. Muitas vezes é justo fazer alguma concessão. Porém, há concessões e concessões. E, sem dúvida, não será possível recuperar os EUA fazendo concessões de princípio aos verdadeiros inimigos do país. (C.L.)

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