sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Só a garantia de cotas de exibição pode salvar o audiovisual brasileiro.

A nova alteração na Lei do Audiovisual, alardeada pelo Minc e pela Ancine como início do reino da fartura para o cinema nacional, é mais uma panacéia para encher as burras dos monopólios televisivos. A verdade pura e simples é que a solução para o audiovisual brasileiro é a garantia de seu espaço impondo cotas aos exibidores, sejam eles cinemas ou TVs

VALÉRIO BEMFICA

Nem bem terminamos de analisar as últimas estultices anunciadas pelo Ministério da Cultura e pela Agência Nacional de Cinema (Edição 2736, de 23/1/09) e já apareceu outra para ser comentada. Na arte de inventar subterfúgios para beneficiar sempre os mesmos, não resolver o problema do audiovisual nacional, mas ganhar algum espaço na mídia, esse pessoal sempre se supera. Pedimos paciência ao leitor, pois nem sempre é fácil demonstrar o quão atoleimado – e subserviente - é o discurso que parece proclamar o início do reino da fartura para o cinema nacional.
Nos tempos do neoliberalismo galopante, quando a Lei do Audiovisual foi criada, foi incluído um artigo (o 3º) que previa incentivo fiscal às distribuidoras estrangeiras. Elas poderiam abater até 70% do imposto devido pela remessa de lucros se investissem em produções independentes nacionais. Não resultou em grande coisa, pois as majors não estavam – e continuam não estando – interessadas em bancar o desenvolvimento do cinema nacional. Alguns anos atrás, no final da era tucana, os grandes estrategistas do aparato cultural resolveram alterar o referido artigo (Lei 10.454, de 13/05/02). Foi incluída, então, a possibilidade de utilizar o dinheiro que deveria ser pago como imposto em “co-produções”. Aí a coisa poderia mudar de figura: as distribuidoras passariam a dar dinheiro para elas mesmas, e não a patrocinar terceiros. Seriam sócios, não patrocinadores. Seria exigir demais que os então mandatários da cultura respondessem a uma singela questão: uma co-produção com uma major não deixa de ser independente?

O fato é que, apesar da alteração, o artigo permaneceu pouco utilizado até 2006, quando o tucano Weffort já havia sido substituído pelo pavão Gil. Após sucessivas quedas na bilheteria do cinema brasileiro a Ancine resolveu injetar mais dinheiro na produção e trombeteou a Instrução Normativa 49, que facilitava o uso do artigo 3º. Aconteceu o óbvio: o espaço de cerca de 10% para os filmes nacionais reservado pela cota de tela foi invadido por (co)produções das distribuidoras estrangeiras. Ao invés de aumentar o espaço dos nossos cineastas no nosso mercado, criou um espaço para as majors na cota de tela.
Mas a bilheteria continua caindo, o cinema brasileiro continua alijado das principais telas, a crise continua aumentando. E o jogo dos burocratas continua o mesmo: ao invés de enfrentar os problemas, fazem um novo anúncio bombástico. Então, além do já comentado Fundo Setorial do Audiovisual, para parecer que estão fazendo algo para ajudar a classe, os preclaros dirigentes da Ancine anunciaram mais uma alteração no artigo 3º. No jargão burocrato-cinematográfico, o artigo 3ºA, que nada mais é do que a extensão do privilégio dado às majors também às TV’s abertas e por assinatura. Ou seja, a partir de agora essas empresas poderão usar 70% do que deveriam pagar de imposto sobre o que remetem ao exterior para financiar (co)produções nacionais. Segundo a Ancine tal generosidade abrirá as portas da TV ao audiovisual independente e injetará milhões de reais nas mãos dos pequenos produtores. Parece bacana? Se fosse verdade, seria. Mas não é... Assim como aliviar os impostos das múltis da distribuição só serviu para aumentar o lucro delas e colocar a produção independente brasileira ainda mais no gueto, a atual medida não vai criar mais mercado e vai encher mais ainda as burras dos monopólios televisivos.
A própria Ancine admite que o audiovisual brasileiro (excluídos os telejornais, novelas, jogos, programas de auditório, reality shows e outras baboseiras) ocupa apenas 6% da grade nas TV’s abertas e 0,5% nas pagas. Isso não se deve à baixa qualidade ou ao alto custo da produção independente. Deve-se, isso sim, a opções políticas, ideológicas e estéticas da indústria cultural. Quanto mais alienante, dominadora, embotadora forem os programas, mais eles gostam. Quanto menos a programação desenvolver a identidade e a cultura do povo, melhor. Querem, diante de suas telas, consumidores submissos, manipuláveis, não cidadãos pensantes. E é por isso que dificilmente algo de saudável, verdadeiro ou culturalmente significativo aparece lá. Como a indústria cultural americana especializou-se em produzir tal tipo de programação, é de lá que importam a maior parte dos programas.
Na realidade já seria mais vantajoso para a TV comprar a programação independente. Não vamos nem falar da maior capacidade que os artistas locais têm para refletir sobre a realidade brasileira e para falar à alma de nosso povo, uma vez que isso pouco importa à Globo ou à Net. Fiquemos apenas no aspecto econômico. Em primeiro lugar, as produções nacionais são mais baratas: basta comparar os orçamentos de Hollywood com os dos filmes nacionais. O produto estadunidense só é mais barato quando pratica dumping. Além disso, quando as redes compram programações internacionais, elas sempre vêm em “pacotes”. Ou seja, para comprar o grande sucesso de bilheteria, precisa comprar junto um balaio de porcarias, o que eleva significativamente os custos. E, finalmente, quando importa programação, a emissora precisa pagar 15% de imposto em nome do vendedor. Quando compra programação brasileira, não precisa. Até o Pedro Bó, fosse ele guindado à presidência da Ancine, se daria conta de que não é por motivos econômicos que a produção independente nacional não entra na TV. E até ele, com sua peculiar inteligência, se daria conta de que a Ancine está voltando a afirmar que, para as emissoras de TV veicularem o produto nacional, precisam ser remuneradas para isso.
A estrutura televisiva no Brasil, que sempre jogou pouco no campo nacional, mais do que nunca é hoje um elo na cadeia da indústria cultural norte-americana. A principal rede de TV aberta, a Globo, que já nasceu com obscuras ligações internacionais, hoje é sócia assumida de um monopólio estrangeiro. As TV’s por assinatura, na prática, são todas estrangeiras, com testas-de-ferro nacionais. Ou seja, seus interesses são guiados de fora. Não compram a produção nacional não porque seja mais cara ou de menor qualidade (ou por ser pouca, como alegam algumas antas), mas porque não querem. Produzem aqui, elas mesmas, o que querem e importam a maior parte do que exibem.
Mas, não podemos negar, a medida da Ancine terá alguns efeitos práticos. Para sermos mais exatos dois, ambos nocivos. O primeiro e mais evidente é o alívio fiscal ao monopólio televisivo. De cada R$ 100,00 que recolhiam de imposto de importação, precisarão recolher apenas R$ 30,00. Os outros R$ 70,00 serão utilizados para preencher a sua grade de programação, com o dinheiro do contribuinte. Isso é particularmente escandaloso se lembrarmos que a importação de produtos da própria matriz é uma das formas mais tradicionais de evasão de divisas, de disfarçar a remessa de lucros. A HBO “Brasil” compra produtos superfaturados da HBO matriz, e ainda tem incentivo fiscal para isso! O segundo efeito, menos claro, será a terceirização da programação (ou seja, precarização do trabalho dos profissionais do audiovisual). A partir de agora, a Globo poderá terceirizar a sua produção de mini-séries, reduzindo custos, cortando postos de trabalho e, melhor do que tudo, com o nosso dinheiro! Vai aumentar seu lucro, sem precisar aumentar em um segundo o tempo de programação realmente independente. Basta terceirizar seus núcleos de produção. Aliás, já tem feito isso através da O2, de Fernando Meirelles, assim como a Record tem feito com a produtora Casablanca. Computando apenas os canais pagos, e sem contar os de programação esportiva, a generosidade da Ancine injetará no bolso dos setores monopolistas cerca de R$ 50 milhões. E a real produção independente brasileira continuará sem tela...
A verdade pura e simples é que a solução para o audiovisual brasileiro não está em mirabolantes artifícios legais e nem na aposta nos mecanismos de “mercado”, até porque, sob a égide do monopólio, não existe mercado algum. A única forma possível de garantir espaço para o audiovisual brasileiro – seja na telona ou na telinha – é impondo cotas aos exibidores, sejam eles cinemas ou TV’s. Limita-se a importação, limita-se a produção própria e cria-se um espaço que deve ser preenchido obrigatoriamente com programação nacional independente, sem nenhum tipo de incentivo fiscal aos exibidores. Parecemos radicais? Pelo contrário. São medidas até conservadoras, adotadas em países como os Estados Unidos e a França. É claro que os exibidores irão chiar: censura, intervencionismo, dirigismo! Afinal de contas eles se consideram donos do que, na verdade, é uma concessão pública. E se acham absolutamente descompromissados com conceitos como cultura, soberania e identidade nacional. E não poderia ser diferente, pois são empresas monopolistas. Que gritem. A função do Estado é justamente impor medidas que coloquem freios à ação delas. E não inventar novas fórmulas para drenar recursos do Estado para elas.
Isso tudo é evidente, menos para os dirigentes da Ancine e do Minc. Qual seria o motivo? Levantaremos algumas hipóteses. A primeira é que eles não se deram conta disso, apesar de já ocuparem seus postos há seis anos. Nesse caso, tendo tomado tantas e tão bombásticas medidas, tendo injetado tanto dinheiro público na mão de conglomerados estrangeiros e, ainda assim, agravado a situação do audiovisual brasileiro, deviam ter a humildade de dar o fora. Que tenham algumas aulas de esperteza com o Pedro Bó e depois tentem voltar. A segunda é que eles sabem direitinho o que fazer, mas não têm coragem. Nesse caso, deveriam tomar o rumo de casa e nunca mais aparecer. E a terceira é que eles sabem o que fazer, mas, na esperança de no futuro pegar alguma boquinha em uma das empresas integrantes do cartel por eles beneficiado, dão uma de desentendidos. Mal sabem eles que o grande capital costuma ser bastante ingrato com seus pequenos servos.
Espécie de síntese das duas primeiras, a última parece ser a hipótese mais provável: uma mistura de pouca perspicácia, muito servilismo e um tanto de oportunismo. E, nesse caso, é difícil que eles saiam por conta própria: cabe ao setor, se quiser sobreviver, indicar-lhes a porta dos fundos.

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