segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A falência de um modelo

Em entrevista à Carta Capital o secretário-executivo do Ministério da Cultura anuncia o desejo de promover mudanças na Lei Rouanet, com o argumento de que “ano após ano, o governo foi reduzindo sua intervenção no fomento (às atividades culturais) e virou um mero passador de recibos”.

O diagnóstico é correto. No ano passado, a Lei Rouanet possibilitou que cerca de R$ 400 milhões de recursos públicos – oriundos de renúncia fiscal – fossem manejados livremente por bancos, montadoras de automóveis, siderúrgicas, etc, para promoverem seu marketing, a título de patrocínio à atividade cultural.

O resultado é que a maior parte desses recursos passa ao largo da produção cultural. São consumidos por intermediários, os famosos captadores, por fundações e institutos criados pelos bancos, e por projetos que se limitam a reproduzir os padrões de subcultura dominantes nas televisões e rádios brasileiras.

Na verdade, a Lei Rouanet não foi criada para dar estímulo e suporte à produção cultural. A lógica na qual ela se insere é a do modelo neoliberal de desmonte e privatização do Estado – mais precisamente a da transferência dos recursos públicos para os monopólios privados.

Esse processo começou no governo Collor. O primeiro setor atingido foi exatamente o da cultura. Com uma canetada foi extinto o Ministério da Cultura, a Embrafilme, esvaziada a Funarte, desmontada peça por peça a estrutura de fomento à atividade cultural no país e de regulação do mercado. O que se dizia, na época, é que os recursos públicos investidos em cultura significavam desperdício e promoviam uma inevitável tutela que impedia o livre e saudável desenvolvimento do setor. A solução seria deixar que a mão invisível do mercado se encarregasse de conduzir a nau ao seu destino, já que tentar regulá-lo contrariava as leis da natureza.

Mas a cândida justificativa não passava de isca para atrair incautos. Tratava-se de convencê-los, sobretudo, de que a renúncia à discussão, elaboração e execução de qualquer política cultural era o dever maior do Estado para com o setor, e que, portanto, o debate sobre o fazer cultural estava banido da esfera pública. Assim os realizadores se veriam definitivamente livres da interferência do Estado, em compensação abdicariam de qualquer perspectiva de influenciá-lo nessa questão.

O objetivo de fundo da manobra começou a revelar-se pouco tempo depois, com a primeira redação da Lei Rouanet. Saudada como a quintessência dos novos tempos de modernidade, liberdade, criatividade e superação das velhas práticas dirigistas e paternalistas, a lei que contou na sua elaboração com a participação, até certo ponto entusiástica, de vários elementos da categoria, particularmente na área cinematográfica, previa mecanismos de renúncia fiscal para as empresas que houvessem por bem investir na cultura. A proporção, na época, era a seguinte: para cada dez reais que a empresa investisse num projeto cultural, três poderiam ser abatidos dos impostos devidos ao Estado, os outros sete sairiam do seu próprio caixa.

Quanto engenho e arte... A lei produziria um fluxo maciço de recursos privados para a atividade cultural. 30% de recursos públicos promoveriam o milagre da multiplicação dos pães, ao mobilizar 70% de recursos privados para financiar o setor. E isso sem o inconveniente dos realizadores terem que submeter seus projetos aos caprichosos, incompreensíveis e inaceitáveis critérios de seleção do Estado. É bem verdade que passariam a submetê-los aos critérios dos bancos, siderúrgicas, montadoras de automóveis, fábricas de produtos alimentícios, empresas com pouca ou nenhuma intimidade com a questão cultural, interessadas tão somente nas possibilidades de marketing geradas pelo projeto e não no seu resultado para o desenvolvimento cultural do país. Mas não eram elas que iriam irrigar o solo sobre o qual se produziria o florescimento da nobre atividade?

Aqui, das páginas do HP, o saudoso cineasta Denoy de Oliveira, inconformado com a estupidez e o oportunismo revelado por alguns de seus pares, denunciava o engodo: “é a ponta do iceberg”... “meteram a gazua na porta e vão entrar com bola e tudo”.

Pois foi o que ocorreu. Primeiro desmontaram a estrutura estatal de fomento. Depois transferiram a responsabilidade pela seleção dos projetos para as empresas, repassando para o seu caixa recursos públicos correspondentes a 30% do valor investido. Mas os monopólios privados disseram: “é pouco”. Então o passo seguinte foi ampliar rapidamente o percentual da renúncia fiscal. A Lei do Audiovisual, criada no governo FH, já previa 100% de isenção. E sucessivamente a Rouanet foi sendo alterada até chegarmos à situação atual, onde absolutamente todos os investimentos em artes cênicas, patrimônio, audiovisual e 80% dos patrocínios nas áreas de artes plásticas, música e livro são feitos exclusivamente com dinheiro público.

Essa verdadeira orgia propiciada pela Lei Rouanet e congêneres – a do Audiovisual, o decreto de isenção do ICMS para as gravadoras multinacionais, etc – já custou bilhões aos combalidos cofres do Tesouro, engordou atravessadores, promoveu nulidades, garantiu marketing a custo zero para os “ïnvestidores”, deformou a atividade do setor, afastou a discussão da política cultural da esfera pública. Os projetos meritórios que ela patrocinou – 80% através das estatais – apenas confirmam a regra.

A verdade é que se esses recursos públicos tivessem sido geridos diretamente pelo Estado o panorama cultural brasileiro seria qualitativamente superior ao atual.

O Ministério da Cultura tem o mérito de estar abrindo a discussão. Não deve, no entanto, ceder à tentação de esgotá-la prematuramente. Mudanças superficiais balizadas pela lógica do modelo que deu origem à Lei Rouanet evidentemente não vão resolver nenhum dos problemas mencionados e podem inclusive agravá-los. É preciso dar o tempo necessário para que a discussão se aprofunde.

Assim como o país não tem chance de encontrar o caminho do desenvolvimento econômico mantendo-se prisioneiro do receituário neoliberal estabelecido pelo FMI com o objetivo de asfixiá-lo e sangrá-lo, não vai também avançar nesse terreno estratégico que é o da cultura submetendo-se a um modelo de fomento criado a partir da sublime inspiração que brota da necessidade de repassar recursos públicos aos departamentos de marketing das empresas.

A avaliação das distorções produzidas no setor por todos esses mecanismos de renúncia fiscal é um bom ponto de partida para o debate. O ponto de chegada deve ser o da definição de uma política cultural e a conseqüente construção de um novo modelo de fomento.

É necessário, porém, não se perder de vista que a principal dificuldade que atravessa a cultura no Brasil não está no fomento à produção, mas no controle exercido pelos monopólios sobre os canais de distribuição. Através desse controle, só a produção realizada pelas grandes corporações, em sua maioria estrangeiras, é que chega efetivamente ao público. A produção nacional de qualidade não chega às rádios e televisões, nem às telas de cinema. E a estrutura estatal de radiodifusão, além de ter sido sistematicamente enfraquecida ao longo dos anos de neoliberalismo, não conta hoje com qualquer política voltada para favorecer a circulação desses bens que, com fomento ou sem fomento, nunca deixaram de ser produzidos no país. É nesse departamento, da regulação e desmonopolização do mercado, que a ação do Estado se faz mais indispensável e decisiva. (SÉRGIO RUBENS DE A. TORRES - 09/04/2004)

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