quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O mercado cinematográfico na contramão do desenvolvimento

Queda do número de espectadores dos últimos 5 anos, no Brasil
público total público dos filmes brasileiros
2003 102.958.314 22.055.249
2004 114.733.498 16.410.957
2005 89.761.095 10.744.280
2006 91.276.579 9.932.474
2007 88.623.940 9.884.599

Os brasileiros foram menos ao cinema em 2007: os espectadores diminuíram em 2,9%, chegando ao menor patamar desde 2002. E o cinema nacional, coitado, continua amargando uma vergonhosa proporção de público: 11,1%, menos do que em 2005 e pouco superior a 2006, quando atingiu 10,9%. Mas o aumento é apenas relativo: foram 9,9 milhões de espectadores de filmes nacionais em 2006, contra 9,8 milhões em 2007, ou seja, cem mil pessoas a menos.

A burocracia da Agência Nacional de Cinema e os testas-de-ferro dos cartéis da indústria cultural apressam-se em arranjar culpados: os estudantes, os cineastas, o público, os piratas, o pipoqueiro. Qualquer um, menos eles, com suas políticas e práticas deletérias para o setor. Pura embromação. A produção nacional foi maior e a economia vive um momento de expansão. Por que isso não se reflete na ampliação do número de espectadores? As sumidades do mercado e de sua agência reguladora não conseguem uma resposta convincente.

Nós do HP, que não temos nenhuma pretensão de sermos sumidade, mas que também não somos nem bobos nem mal-intencionados, precisamos apenas de uma frase para explicar a situação. O preço do ingresso é extorsivo, os locais de exibição são concentrados e pouco acessíveis à maioria da população e os filmes que chegam, de fato, às telas do circuito exibidor são, em sua maioria, ocos e desinteressantes.

Para nossos leitores, mais não precisaríamos dizer. Já abordamos várias vezes o tema e esta é uma realidade evidente. Mas talvez reste, dentre os responsáveis no Minc e na Ancine pela formulação de políticas para o setor, alguma boa alma, ainda não cooptada pelos interesses das majors da produção, distribuição e exibição. Expliquemos, então, cada um destes três fatores.

Para esclarecer a situação, vamos relembrar o ano de 1975. O país contava com cerca de 100 milhões de habitantes. Foram vendidos, naquele ano, 275 milhões de ingressos. Havia 3.276 salas de cinema e pagava-se, em média, U$ 0,39 para assistir a um filme. Em 2007, com uma população de quase 190 milhões de pessoas, foram vendidos 88,6 milhões de ingressos, em 2.300 salas, a um preço médio de U$ 4,70. O número de ingressos per capita caiu 83%, as salas diminuíram 30%, mas a renda aumentou 290% em dólares! E o valor médio do ingresso subiu incríveis 1.105%!

“A culpa é da meia-entrada”, que seria o “câncer do entretenimento no Brasil”, cacareja nos jornais um funcionário de terceiro escalão das multinacionais da exibição. Mentira deslavada, leitor. Empresas como a Cinemark é que são o câncer da cultura mundial! A conquista histórica dos estudantes nunca foi um problema para os cinemas - na realidade sempre foi um importante instrumento de formação de público -, até a emissão da Medida Provisória 2208/01, exarada pelo então Ministro da deseducação tucano, Paulo Renato de Souza. Sua verdadeira intenção era acabar com o direito dos estudantes e com as entidades estudantis, tentando equiparar qualquer papel velho às carteirinhas emitidas pelas organizações representativas dos estudantes. Se os cartéis do entretenimento estivessem se importando com o assunto, juntariam forças com os estudantes na luta pela revogação da absurda medida. Mas nada fazem. Além do mais, o argumento é um atentado à matemática. Em 2001 - antes da MP, portanto - o preço médio do ingresso era de U$ 2,45, isto é, 528% maior do que o de 1975, quando a meia-entrada já existia. O preço quintuplicou, sem que houvesse aumento nas vendas para estudantes. E, em 2007 ele é 92% maior, em dólares, do que em 2001. Ou seja, praticamente dobrou. Se houvesse 100% de meias-entradas - o que nem sequer o fanfarrão supracitado tem coragem de alegar - ainda assim eles estariam ganhando a mesma coisa.

Uma comparação por década permite vislumbrar melhor a política dos cartéis do setor. Durante os anos 70 a meia-entrada para estudantes era respeitada. O preço médio do ingresso foi de U$ 0,44 e a média de ingressos vendidos por ano era de 214,1 milhões. Entre 1980 e 1989 o direito dos estudantes foi cassado, nos estertores do regime ditatorial. O resultado é que o preço médio saltou para U$ 2,62 e o público caiu 45%, para 118,2 milhões. Os anos 90, que marcam a invasão das empresas estrangeiras no setor, viram a meia-entrada ressurgir. Mas, apesar dela (e não por conta dela), os preços continuaram subindo e o público sumindo.

O ingresso custou, em média, U$ 3,09 e o público ficou abaixo dos 75 milhões. A tendência continua igual na década atual. A relação que se pode estabelecer é óbvia: quanto mais caro o ingresso, menor o público. E foi justamente isso que eles quiseram fazer.

Os verdadeiros motivos para aumentos tão absurdos devem ser procurados no processo de monopolização que o setor sofreu. Uma das características do capitalismo monopolista é que o custo, a qualidade do produto ofertado e a demanda real do mercado deixam de ser determinantes. Ao monopolizar a distribuição, determina-se a produção e o consumo e, é claro, o preço. Ou seja, só consegue produzir quem é monopolista e possui um canal próprio de distribuição ou que mantém um contrato de distribuição com o monopolista - que só distribui o que quer. E o consumidor, se quiser o produto, precisa pagar aquilo que quem controla o mercado determinar. Rockfeller não se tornou magnata do petróleo porque tinha um faro melhor do que os outros para a perfuração. Simplesmente monopolizou o transporte do produto, inicialmente através das ferrovias e depois dos pipelines. Só conseguia escoar a sua produção aquele que se submetesse aos seus interesses. E o consumidor só conseguia comprar dele, ao preço que ele queria.

Não foi muito diferente no mercado cinematográfico brasileiro. O fechamento da Embrafilme, distribuidora estatal, por Fernando Collor, em 1990, criou condições para que as grandes multinacionais tomassem conta do mercado. Hoje cinco delas (Columbia Tristar, Fox, UIP, Warner Bros. e Sony) dominam sozinhas 86% da distribuição de filmes no território nacional. Para quem acredita em besteiras do tipo “o importante é garantir o conteúdo nacional, não importa quem distribua”, vamos analisar mais alguns números. Selecionamos as 100 maiores bilheterias do cinema no Brasil, desde 1974 até 2005. Destas, 48 são do período em que existia a Embrafilme (até 1989). As distribuidoras nacionais (incluindo as independentes) foram responsáveis por 26 lançamentos (25 filmes brasileiros e um estrangeiro) e as multinacionais por 22 (3 brasileiros e 19 estrangeiros). Em termos de público, havia um equilíbrio. Tanto os filmes nacionais quanto as distribuidoras nacionais ficaram com cerca de 50% do mercado. Quando computamos o período a partir de 1990, a situação é tétrica. De 52 filmes, apenas um foi distribuído por uma empresa nacional: justamente o último da Embrafilme. E 42 deles são filmes estrangeiros, que abocanharam 84% do público. Estes números, apesar de se referirem apenas às maiores bilheterias, não deixam margem para dúvidas. Foi só eliminar a presença estatal que as múltis trataram logo de sufocar as distribuidoras independentes e privilegiar o produto de suas matrizes em detrimento do filme nacional. A concentração e a desnacionalização são evidentes. No ano de 1975, encontramos três filmes nacionais, distribuídos por empresas também nacionais, entre as cinco maiores bilheterias. E estes cinco filmes corresponderam a 12,68% dos ingressos vendidos. Em 2007 as cinco maiores bilheterias são estrangeiras - tanto os filmes quanto as distribuidoras - e abocanharam 24,77% dos ingressos.

Um pouco mais tarde, em 1997, as distribuidoras estrangeiras ganharam um aliado providencial: a Cinemark, capitaneando a desnacionalização e a monopolização no setor de exibição, começou a abrir seus pulgueiros por aqui. Depois veio a UCI. A lógica do monopólio é ganhar mais fazendo menos. Muitas salas, várias empresas, em muitas cidades é uma coisa trabalhosa para administrar. O cinema, que sempre fora uma diversão popular, com forte presença das chamadas classes C e D, precisava ser elitizado. Os cinemas de rua, os cinemas de bairro, administrados por empresas independentes e freqüentados pelo povo tinham que desaparecer. Arrecadar U$ 0,39 de quase 300 milhões de pessoas dá muito trabalho. Melhor morder U$ 4,70 de 88 milhões. Rende mais e é mais fácil. Além disso, chamando só as classes A e B para o cinema, dá para vender pipoca dez vezes mais cara, baldes de refrigerantes, cachorros-quentes e mais um monte de quinquilharias. Os preços praticados pelas distribuidoras inviabilizaram os exibidores independentes. Os cinemas se mudaram para os shoppings e o povão ficou de fora. E, como a matriz quer “globalizar” seus rendimentos, o preço precisa ser equiparado de lá. Nos EUA um ingresso de cinema custa, em média, U$ 6,03. É a meta de empresas como Cinemark e UCI.

A verdade é que os únicos responsáveis pelo astronômico preço dos ingressos no Brasil são os integrantes do cartel da indústria cultural: grandes estúdios, distribuidoras estrangeiras, exibidores multinacionais. Eles optaram claramente por expulsar o público de menor renda do cinema, boicotar a produção nacional, reduzir o número de títulos em cartaz, privilegiar a cinematografia de Hollywood. É o que eles chamam de “modelo de negócio”. Seu único compromisso é com o lucro fácil: que se danem a cultura, a diversidade e o interesse do público.

O chorado declínio do cinema nacional tem relação direta com este processo. O cartel estrangeiro da distribuição e da exibição só abre espaço para o filme nacional se for obrigado. É muito mais simples, para eles, trabalhar o produto da matriz do que perder tempo com a cinematografia nacional. O filme já chega aqui pago, com as peças publicitárias prontas, com os prazos e contratos para exibição em cinema, TV paga, TV aberta e lançamento em DVD definidos. O cinema nacional é, para eles, um estorvo, um entrave para atingir as metas e cumprir os cronogramas definidos em Hollywood.

Além disso, o preço praticado hoje inviabiliza justamente o público mais fiel do cinema brasileiro, as classes C e D. Toda uma geração de cineastas dedicou-se a criar uma linguagem, uma estética, que fosse capaz de comunicar-se com a maioria do povo. E conseguiu. Foi por isso que os filmes brasileiros chegaram a ocupar a metade do mercado e a ultrapassar a barreira dos 60 milhões de espectadores em um ano. Mas para isso era fundamental que o acesso às salas fosse possível, ou seja, que os ingressos fossem baratos. A decisão das majors de multiplicar os seus lucros, após terem cartelizado o setor, expulsou o povo do cinema e, com ele, o filme nacional.

Obviamente foram produzidos excelentes filmes, no Brasil, em 2007. Mas a verdade é que eles não chegam às telas ou, quando chegam, atingem só meia-dúzia de salas. Menos de dez empresas, entre distribuidoras e exibidores multinacionais - determinam o que chegará às telas e dizem que este é o “gosto do público”.

Quando um cineasta ou sua produtora termina um filme, é preciso fazê-lo chegar aos cinemas. Para isso são necessárias três coisas: cópias do filme, espaço no cinema e um pouco de publicidade para que o público saiba que o filme está em cartaz. São justamente estes passos que estão na mão de empresas estrangeiras. São as distribuidoras que fazem as cópias e as entregam aos cinemas, além de investirem em publicidade. E onde o leitor acha que empresas como Columbia Tristar, Fox, UIP, Paramount Pictures, Warner Bros. e Sony preferem investir seu dinheiro, na produção nacional, nos bons filmes do mundo inteiro ou nos enlatados que eles mesmo produzem nos EUA? A resposta é óbvia. A voracidade destes predadores da cultura nacional é tanta que, em maio deste ano chegamos ao descalabro de ter 80% das salas de cinema do Brasil ocupados por apenas três filmes: O Homem Aranha 3, Piratas do Caribe 3 e Shrek 3, todos eles norte-americanos. Quem quisesse ver um dos quase 100 filmes brasileiros lançados no ano passado, algum outro filme feito fora dos EUA ou ainda um filme americano que não tivesse sido produzido por alguma major, teria dificuldade. Das cerca de 2.300 salas de cinema do país, mais ou menos 1.840 estavam projetando uma destas três “obras-primas”.

Algum desavisado poderá perguntar: mas por que o produtor nacional não investe em cópias também e coloca o seu produto em tantos cinemas quanto os estrangeiros? Em primeiro lugar, porque não teria poder econômico para enfrentar os cartéis multinacionais. O campeão de bilheteria do ano, Homem Aranha 3, gastou em cópias cerca de R$ 3 milhões de reais. É mais do que custou a produção da maioria dos filmes nacionais. Isso sem contar os custos de publicidade, que são mais do que o triplo disso. E, em segundo lugar, porque ficaria com suas cópias encalhadas: entre distribuidores americanas e as redes de exibição existe uma relação para lá de promíscua.

Um outro, inocente, poderia perguntar então: tudo bem, os americanos dominam o mercado, mas isso significa que os filmes são ruins? Significa sim. No campo da cultura, a mesmice, a repetição, a falta de diversidade - ou seja, as ações típicas dos monopólios - resultam em mediocridade. Eles não procuram tomar conta do mercado fazendo muitas produções, de ótima qualidade, que agradem a todos os tipos de público. Querem é produzir o mínimo possível, apostar nas mesmas fórmulas, embotadoras de consciências e liquefatoras de cérebros. Não é à toa que os três filmes que citamos são seqüências, histórias requentadas. Tampouco é coincidência que eles ocupem, na lista dos mais vistos, a mesma posição, tanto nos EUA quanto no Brasil (Homem Aranha 3 em 1º, Shrek 3 em 2º e Piratas do Caribe 3 em 4º). Quer dizer, transformam, sem nenhum pudor, o nosso mercado em extensão do deles: os mesmos lançamentos, a mesma ordem de prioridade, as mesmas “ações de marketing”. Mas o Brasil não é os EUA e tem gente que, entre ver uma porcaria enlatada no cinema e ficar em casa, prefere a segunda opção. Quanto mais eles tomam conta do pedaço, menor é o público.

Um terceiro, ingênuo, faria uma última pergunta: por que, então, o público não prefere o cinema nacional? Primeiro porque, como dissemos antes, o bom cinema nacional - assim como o de outras partes do mundo - praticamente não chega às telas. Fica no gueto, restrito a poucas salas, sem publicidade. Não é apenas ignorado pelo cartel das distribuidoras e exibidores: é sabotado por ele. Dos 93 filmes brasileiros exibidos em 2007, 68 foram lançados com menos de 20 cópias. O campeão de bilheteria, o já citado “Homem Aranha 3”, foi lançado com 869 cópias. Não é concorrência desleal, é concorrência impossível. E o filme nacional que chega aos cinemas (sob as bênçãos do cartel) é, salvo honrosas exceções, uma tentativa de imitar ou a televisão, ou a produção norte-americana. No primeiro caso, ficar em casa é mais barato e mais cômodo. No segundo, melhor ver o original. Em qualquer um dos dois, o resultado é incapaz de alavancar o cinema brasileiro a um patamar acima do atual.

Mesmo os desavisados, inocentes e ingênuos já devem ter entendido a questão. Se quisermos ter uma indústria cinematográfica forte - na produção, distribuição e exibição - é preciso conter a sanha monopolista no setor. Precisamos garantir não apenas que os filmes sejam rodados, mas que possam chegar ao público por um preço acessível. E, se depender da turma de Hollywood, isso nunca vai acontecer. E o que estão fazendo o Ministério da Cultura e a Agência Nacional do Cinema com relação a isso? Por incrível que pareça, leitor, reforçando a política dos cartéis. Aliviam a reclamação dos realizadores distribuindo alguns caraminguás através de editais. Mas não aumentam a cota de tela fingindo acreditar que um mercado monopolizado possa ter condições de regular o setor - a obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais que já foi de 50% vai hoje de 8,7%, para as salas dos maiores complexos, a 7,6%, para os cinemas de apenas uma sala. Criam uma linha de financiamento no BNDES para expandir a rede de exibição, mas a principal beneficiada é justamente a Cinemark. Ao invés de garantir a existência de distribuidoras nacionais, permitem que as múltis usem incentivos fiscais para determinar quem irá ocupar os minguados 10% de mercado do cinema nacional. E ainda fazem eco com o cartel, reclamando das carteiras de estudante e dos direitos autorais pagos pelos exibidores. Ou seja, fazem de tudo para aumentar o poderio e o lucro daqueles que destroem não apenas a nossa cinematografia como o próprio mercado cinematográfico brasileiro.

Desde Humberto Mauro até Walter Salles, passando por Anselmo Duarte, Glauber Rocha, Roberto Santos, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Denoy de Oliveira, Carlos Reichenbach, Ruy Guerra, entre tantos outros, o cinema brasileiro já deu mostras de sobra que pode ser criativo, popular, inteligente, revolucionário. Mas não é imortal. Não é páreo para um dos maiores e mais bem organizados cartéis gerados pelo imperialismo. Para continuar existindo, precisaria do apoio decisivo do Estado brasileiro, de leis que efetivamente o protegessem, de autoridades verdadeiramente dispostas a defendê-lo. Infelizmente, o que temos hoje encastelados no Minc e na Ancine são cúmplices - alguns mais conscientes do que os outros de sua cumplicidade - da turma de Hollywood. (VALÉRIO BEMFICA – 25/01/2008)

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