domingo, 10 de janeiro de 2010

A honra e o prazer


As indicações para o 2º Prêmio Tim de Música, divulgadas no dia 16 de junho, sugerem uma reflexão sobre a situação do mercado nacional, assolado pela ação predatória de cinco gravadoras multinacionais - Warner, Sony, Universal, BMG e Emi.

Das 102 indicações para premiação, elas obtiveram apenas 28 - 9 concentradas na categoria Pop/Rock. As 74 indicações restantes distribuíram-se por 26 gravadoras nacionais, incluindo a Som Livre, das Organizações Globo, que recebeu 4, e 5 produções independentes.

Não se pode dizer que o Prêmio Tim apresente critérios de seleção desfavoráveis às cinco irmãs. As 12 categorias são MPB, Pop/Rock, Samba, Canção Popular, Regional, Instrumental, Especiais, Melhor Canção, Arranjador, Revelação, Projeto Visual e Voto Popular. MPB e Samba, juntas, têm 24 indicações, 3 a menos que Pop/Rock e a curiosa categoria Canção Popular somadas. No item Especiais, há 3 indicações de CDs gravados em língua estrangeira. Não existe sequer, de forma individualizada, a categoria Choro, onde a produção das cinco multinacionais é nula.

O conglomerado Telecom Itália, também entusiasta dos métodos monopolistas, não iria cometer a imprevidência de aceitar que em seu nome fossem estabelecidos critérios para favorecer as gravadoras nacionais e a produção independente, contra seus pares. Então, as perguntas que não querem calar são as seguintes: como essas cinco gravadoras conseguem ocupar 85% do espaço das emissoras de rádio e televisão, dedicado à música, e 85% do mercado de venda de CDs? Por que as gravadoras nacionais, apresentando uma produção comprovadamente diversificada e de qualidade, não passam de 15% e sem a Som Livre não chegam a 3% desses dois mercados que caminham em paralelo?

A resposta cabe numa palavra: jabá. Warner, Sony, Universal, BMG e Emi pagam para que suas gravações sejam executadas. E o que é pior: não pagam só para executar Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Lulu Santos, Daniela Mercury, Caetano Veloso, Maria Rita, os trinta e poucos artistas que restaram em seus casts, cujo trabalho não prima pela vulgaridade. Pagam principalmente para executar o lixo, aquilo que nem a proverbial cara-de-pau que ostentam lhes permite apresentar a uma seleção como a do Prêmio Tim.

Além de se constituir numa forma acintosa de suborno, para o açambarcamento do espaço público da comunicação, o jabá é um modo de concorrência desleal contra as dezenas de gravadoras nacionais que mantêm a MPB viva. Por incrível que possa parecer, boa parte da verba gasta em jabá pelas cinco multinacionais vem de uma inexplicável isenção do ICMS que as favorece há vários anos.

A conseqüência dessa ação predatória contra o nosso mercado musical é que de 6º lugar no ranking mundial, já caímos para o 13º. Segundo dados fornecidos pela ABPD (Associação Brasileira de Produtores Discográficos), em 2002 foram vendidos 80 milhões de CDs, contra 107 milhões em 1997. Responsabilizar os piratas menores é fácil. O difícil, aos maiores, é eximir-se da parte que lhes cabe nesse descalabro.

Para que não se pense que haja sombra de exagero no quadro descrito, invocamos o testemunho do sr. André Midani, alto executivo da indústria fonográfica, entre os anos 60 e 90. Em entrevista concedida ao jornalista Pedro Alexandre Sanches (maio de 2003), além de admitir a prática do jabá, ação da qual se arrepende parcialmente, acrescenta esclarecedores detalhes à cena:

"Quando cheguei no Brasil, em 55, o jabá não existia do jeito que possa ser pensado hoje...

"Tal como ele é... o jabá começou, creio, em 70, 71 ou 72..."

"Nos anos do milagre brasileiro do início do governo FHC, se nos Estados Unidos o custo de lançar uma música no rádio com esse tipo de ajuda promocional era de US$ 300 mil por uma canção, no rádio brasileiro era de R$ 80 mil a R$ 100 mil..."

"Há, por exemplo, o caso recente da Abril Music. Essa companhia entra no mercado, paga o que tiver que pagar para poder tocar e desestabiliza as outras companhias. O prejuízo da Abril foi de milhões e milhões de reais em cinco anos..."

"Não importa o tamanho dos artistas. Tem que pagar. A honra e o prazer são coisas que não existem mais".

A música brasileira, pela sua riqueza, diversidade e qualidade, é o nosso mais bem sucedido produto cultural. Amplamente reconhecida no mundo, é parte integrante e indispensável do desenvolvimento da identidade nacional. O mercado brasileiro de discos movimenta R$ 1 bilhão/ano e poderia estar rendendo o dobro ou o triplo, não fosse a miopia e o imediatismo – para não dizer a sabotagem – de cinco empresas estrangeiras que pagam caro para que as emissoras de rádio e televisão executem um repertório cada vez mais reduzido e menos qualificado.

As dezenas de gravadoras nacionais e artistas independentes que lançaram mais de 4.000 títulos diferentes de cds, que contêm a maior parte do que de melhor foi produzido nos últimos 10 anos em matéria de música brasileira, estão sendo miseravelmente lesadas – excluídas do espaço público da comunicação e, conseqüentemente, das estantes das lojas – pelo flagelo do jabá.

Já é tempo do Ministério Público, Polícia Federal, Ministério da Justiça, Ministério do Desenvolvimento, CADE, Ministério das Comunicações, Ministério da Cultura e Congresso Nacional assumirem a responsabilidade de pôr um fim a esse escandaloso abuso do poder econômico.

Suborno é crime, tanto o ativo quanto o passivo. Monopolização do espaço público da comunicação é crime. Concorrência desleal é crime. Dilapidação do mercado nacional é crime. Atentar contra o nosso patrimônio musical é crime.

Que fique claro: Quem não tiver competência para atuar no setor musical com prazer e honra deve deixá-lo a quem tem. O quanto antes isso ocorrer, melhor será para a restauração da saúde de nosso combalido mercado musical. A música brasileira precisa e merece essa consideração. (SÉRGIO RUBENS DE A. TORRES - 26/06/2004)

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