quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O bravo povo do Haiti e a sua incessante luta pela liberdade


Os haitianos têm resistido ao poder econômico e militar dos EUA e de outros desde a sua independência

CARLOS LOPES

Às vezes, um detalhe revela muito sobre o conjunto de um quadro. O professor haitiano Henry Boisrolin, em entrevista na Argentina (onde leciona na Universidade de Córdoba), referiu-se a que o Haiti, até o terremoto de 12 de janeiro, era o maior exportador de bolas de beisebol para os EUA, apesar de ninguém no Haiti se interessar por beisebol - e quase ninguém nem ao menos saber o que é esse jogo. A bola de beisebol, como se sabe, é um produto altamente sofisticado: uma rolha esférica coberta por couro. Como diz Boisrolin: “O Haiti não é um país pobre, é um país empobrecido”.

Como disse o jurista norte-americano William P. Quigley, defensor das vítimas do Katrina contra o governo Bush, “as corporações dos EUA têm, por anos, com a elite haitiana, dirigido estabelecimentos de escravização com dezenas de milhares de haitianos ganhando menos do que US$ 2 por dia”.

O que é ainda menos do que o salário mínimo legal, o equivalente a US$ 3,75 ao dia, ou, mais exatamente, US$ 0,375 por hora, pois a jornada de trabalho mínima é de 10 horas - e esqueçamos, aqui, coisas a que estamos acostumados, como férias, descanso semanal remunerado, etc., etc. Isso não existe nas “indústrias” que fornecem às multinacionais americanas no Haiti (nem mesmo, como observou Michael Moore, naquelas que fazem enternecedores bonecos do Mickey Mouse para a Disney).

Um professor de economia da Columbia University, de Nova Iorque, que esteve em um desses estabelecimentos de escravização, assim o descreveu: “A fábrica é quente, vagamente iluminada, superlotada de gente. O ar é pesado pela poeira e pela lanugem que solta dos tecidos. Não há nenhuma ventilação de que se possa falar. Pilhas de sobras de pijamas, vestidos, saias, entopem cada corredor e cada canto. Os trabalhadores têm caras tristes, cansadas. Eles curvam-se por cima de máquinas de costura antiquadas, algumas com mais de 20 anos, costurando vestidos ‘Kelly Reed’ para serem vendidos na Kmart, e outros produtos para lojas dos Estados Unidos. Vários trabalhadores informaram que tinham trabalhado sete domingos seguidos – em outras palavras, mais de 50 dias diretos, sem um dia de folga, mais de 70 horas por semana - durante a estação mais quente do ano. Perguntado se este horário criou problemas para os empregados ou a fábrica no conjunto, o gerente, Raymond DuPoux, disse que ‘eu é que tenho problemas, porque não posso ir à praia. Portanto, tenho problemas com minha esposa’”. (Eric Verhoogen, “The U.S./Haiti Connection - Rich Companies, Poor Workers”).

Sobre esse “gerente”, como disse o presidente Aristide ao filósofo canadense Peter Hallward, há aqueles, no Haiti, que “sentem-se em dívida de gratidão com um patrão, um chefe. O chefe é americano, um americano branco; e você é preto. Não subestime o complexo de inferioridade que ainda tão frequentemente condiciona essas relações. Você é preto, mas às vezes você chega a se sentir mais branco do que o branco, se você está disposto a ajoelhar-se na frente dos brancos. Isso é um legado psicológico da escravidão” (Peter Hallward, “An Interview with Jean-Bertrand Aristide”, London Review of Books, fev./2007).

Realmente, feitores e capitães-do-mato não são fenômenos raros. Menos ainda naquela minúscula elite haitiana que apoiou Papa Doc durante décadas.

O cineasta norte-americano Kevin Pina, em seu artigo “The people do not buy liberty and democracy at the market” (“O povo não compra liberdade e democracia no mercado” - a frase é do presidente Jean-Bertrand Aristide), refere-se à aprovação, debaixo da pressão das multinacionais, do salário-mínimo de US$ 3,75 por dia como “o ato final de retorno oficial do Haiti ao neoliberalismo”. A rigor, esse salário passou a ser o máximo, e não o mínimo, para os trabalhadores haitianos. O motivo é que o salário por peça foi deixado à solta – logo, ninguém consegue ganhar nem mesmo o salário mínimo, pois as empresas o burlam através desse pagamento por peça. No primeiro mandato de Aristide, no mesmo decreto em que aumentou o salário mínimo em 140%, o presidente determinou que o salário por peça teria que corresponder, pelo menos, ao salário mínimo. Ou seja, tinha feito com que o mínimo fosse realmente o mínimo.

Kevin Pina é autor de uma série de impressionantes documentários sobre o Haiti (onde morou, de 1999 a 2006) e, especialmente, sobre a deposição do presidente Aristide, em 2004, pela invasão das tropas dos EUA. No ano anterior, Pina denunciara que o governo americano estava bancando mercenários para derrubar Aristide (V. “Is the US Funding Haitian Contras?”, The Black Commentator, 03/04/2003). Estava certo.

Como é sabido, após a sua primeira deposição, em 1991, e sua volta ao Haiti, em 1994, Aristide cedeu em parte às pressões econômicas norte-americanas. Mas, na medida em que tornou-se patente o desastre, recusou-se a prosseguir no que percebia como a devastação de seu país - e de seu povo.

Como diz Pina, “que o movimento político Lavalas [o partido de Aristide] opunha-se ao modelo econômico neoliberal que está se desenrolando atualmente no Haiti, é fora de dúvida. A insistência do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento em ajustes estruturais que incluíam a eliminação das tarifas de importação e exportação, a liquidação de empreendimentos e empresas estatais, um salário mínimo baixo e uma confiança obsessiva no setor privado como o motor do desenvolvimento econômico foi chamado ‘o plano da morte’.”

E ele continua:

O principal obstáculo ao plano das instituições financeiras internacionais para o Haiti era a própria democracia, na forma do movimento Lavalas, que representava os interesses da maioria dos pobres, e o presidente que eles elegeram duas vezes, Jean-Bertrand Aristide. O governo recusou a privatização de empresas-chave, como a Companhia Telefônica (Teleco) e a companhia de eletricidade (EDH), e enquanto as instituições financeiras internacionais também insistiam em que os programas sociais fossem cortados, o partido Fanmi Lavalas usava os lucros desses empreendimentos estatais para investir em um programa de alfabetização universal e fornecer milhões de refeições subsidiadas aos pobres. Pela primeira vez na história, o Haiti teve uma rede de seguridade que protegia contra a fome e a subnutrição generalizadas. Passando por cima das objeções das instituições financeiras internacionais e da elite econômica predatória do Haiti, a força de trabalho com pagamento mais baixo do hemisfério teve o salário mínimo duplicado duas vezes, no primeiro e no segundo mandato de Aristide. Não por coincidência, ambos os mandatos foram interrompidos por um golpe.

O próprio Arisitide não era, no início, um adversário da privatização. Nas suas próprias palavras: “Quando eles [os americanos] insistiram, via FMI e outras instituições financeiras internacionais, na privatização das empresas estatais, eu estava, em princípio, preparado para concordar – mas eu recusei simplesmente entregá-las, incondicionalmente, a investidores privados. Mais que uma ilimitada privatização, eu estava preparado para concordar com a democratização dessas empresas, de forma que algo dos lucros de uma fábrica ou companhia pudesse ir para as pessoas que trabalhavam nela, ser investido em escolas próximas ou clínicas de saúde, para que os filhos dos trabalhadores tivessem algum benefício” (entrevista a Peter Hallward).

Mas isso era completamente insuficiente para os EUA. Eles queriam transformar o país num campo de trabalho escravo, com alguns feitores haitianos.

Assim, quais são as “empresas haitianas”? Aqui estão alguns exemplos, colhidos por Eric Verhoogen:

- Seamfast Manufacturing - produz vestidos para as redes norte-americanas Kmart e J.C. Penney.

- Chancerelles S.A. - subsidiária da Fine Form, de Nova Iorque, produz sutiãs e cuecas para a Elsie Undergarments, da Flórida.

- National Sewing Contractors - produz pijamas para a Disney e roupas de meninas para a Popsicle Playwear, de Nova Iorque.

- Excel Apparel Exports - produz roupas íntimas femininas para a Hanes, divisão da Sara Lee Corp., vendidas pelo Wal-Mart e pela rede Dillard Department Stores, com sede em Little Rock, Arkansas. Observação de Verhoogen: “Antes do presidente Aristide aumentar o salário mínimo, a cota diária de um trabalhador desta empresa era 360 peças por dia. Agora [depois da deposição do presidente], a cota passou para 840 peças por dia. Os trabalhadores não têm o direito de reclamar do ritmo de trabalho; eles não têm nem mesmo o direito de falar um com o outro”.

- Alpha Sewing - produz luvas para a Ansell Edmont of Coshocton, Ohio, filial da Ansell International of Lilburn, Geórgia.

Kevin Pina retrata vividamente - e tristemente - a situação após o golpe de 2004:

Em todas as partes o movimento Lavalas e os pobres continuaram a manifestar-se contra o golpe, exigindo justiça e que fosse permitido a Aristide voltar ao Haiti. Seus líderes desapareceram, como Lovinsky Pierre-Antoine, no dia 12 de agosto de 2007, ou apodrecem na prisão, como Ronald Dauphin, ou sucumbiram às torturas, como o padre Gerard Jean-Juste no dia 27 de Maio de 2009.

Um dos documentários de Pina é sobre o funeral do padre Gerard Jean-Juste. Milhares de pessoas compareceram – e enfrentaram uma chuva de balas.

William Quigley, professor de Direito da Loyola University New Orleans, após o terremoto, propôs que os EUA pagassem a sua dívida com o Haiti. Pedimos licença ao leitor para uma citação mais extensa.

Quigley lembra que “há mais de 200 anos os EUA têm se esforçado para quebrar o Haiti. Nós devemos ao Haiti. Não é caridade. Nós devemos ao Haiti como uma questão de justiça. Reparações. E não os US$ 100 milhões prometidos pelo presidente Obama - isso é dinheiro de Powerball [loteria americana com prêmios que vão além de US$ 300 milhões]. Os EUA devem Bilhões - com B maiúsculo - ao Haiti. Os EUA usaram o Haiti como uma ‘plantation’. Os EUA ajudaram a sangrar o país economicamente desde que ele se libertou, repetidamente invadiram o país, apoiaram ditadores que abusaram das pessoas, usaram o país como alvo de dumping para nossa própria vantagem econômica, arruinaram suas estradas e agricultura, e derrubaram as autoridades eleitas pelo povo. Os EUA até usaram o Haiti como os velhos latifundiários das ‘plantations’ [isto é, os senhores de escravos], baixando ali para diversão sexual.”

Em seguida, Quigley faz um resumo, uma “breve história” do Haiti - e, particularmente, das relações entre os EUA e o Haiti:

“Em 1804, quando o Haiti conquistou sua liberdade da França, na primeira revolução de escravos bem sucedida no mundo, os Estados Unidos recusaram-se a reconhecer o país. Os EUA continuaram se recusando a reconhecer o Haiti por mais 60 anos. Por quê? Porque os EUA continuavam a escravizar milhões de seus próprios cidadãos e temiam que, se reconhecessem o Haiti, encorajariam a revolução dos escravos nos EUA.

“Depois da revolução de 1804, o Haiti foi alvo, pela França e pelos EUA, de um mutilante embargo econômico. As sanções americanas duraram até 1863. A França, enfim, usou seu poder militar para forçar o Haiti a pagar indenizações pelos escravos libertados. As indenizações foram de 150 milhões de francos. (A França vendeu todo o território da Louisiana aos EUA por 80 milhões de francos!).

“O Haiti foi forçado a tomar dinheiro emprestado nos bancos da França e dos EUA para pagar indenizações à França. Um grande empréstimo aos EUA foi feito em 1947 para quitar a dívida com os franceses. Qual o valor atual do dinheiro que o Haiti foi forçado a pagar aos bancos franceses e dos EUA? Mais de 20 Bilhões – com B maiúsculo - de dólares.

“Os EUA ocuparam e governaram o Haiti pela força de 1915 a 1934. O presidente Woodrow Wilson enviou tropas para invadi-lo em 1915. As revoltas dos haitianos foram esmagadas pelos militares americanos – que mataram, somente em um confronto, mais de 2.000 haitianos. Nos dezenove anos seguintes, os EUA controlaram as alfândegas do Haiti, cobraram impostos e mandaram em muitas das instituições governamentais. Quantos bilhões foram sugados pelos EUA durante esses 19 anos?

“De 1957 a 1986, o Haiti foi forçado a viver sob os ditadores sustentados pelos EUA, ‘Papa Doc’ e ‘Baby Doc’ Duvalier. Os EUA apoiaram econômica e militarmente esses ditadores porque eles faziam o que os EUA queriam e eram politicamente ‘anticomunistas’ – o que agora se traduz como contra os direitos humanos de seu povo. Duvalier roubou milhões do Haiti e contraiu uma dívida de centenas de milhões, que o Haiti ainda deve. Dez mil haitianos perderam suas vidas. As estimativas são de que o Haiti deve US$ 1,3 bilhão de dívida externa e que 40% dessa dívida foi contraída pelos Duvaliers, sustentados pelos EUA.

“Trinta anos atrás, o Haiti não importava arroz. Hoje, o Haiti importa quase todo o seu arroz. Ainda que o Haiti tenha sido a florescente capital do açúcar do Caribe, agora também importa açúcar. Por quê? Os EUA e as instituições financeiras mundiais dominadas pelos EUA – o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial – forçaram o Haiti a abrir os seus mercados para o mundo. Então, os EUA promoveram o dumping no Haiti com milhões de toneladas de arroz e açúcar americano a preço subsidiado – destruindo os agricultores e levando à ruína a agricultura haitiana. Ao arruinar a agricultura haitiana, os EUA forçaram o Haiti a tornar-se o terceiro maior mercado mundial do arroz americano. Bom para os fazendeiros americanos, mau para o Haiti.

“Em 2002, os EUA bloquearam centenas de milhões de dólares em empréstimos ao Haiti que seriam utilizados, entre outros projetos públicos como educação, para estradas. São essas as mesmas estradas que agora as equipes de socorro têm tido tanta dificuldade de percorrer!

“Em 2004, os EUA outra vez destruíram a democracia no Haiti, quando apoiaram o golpe contra o presidente Aristide, eleito pelo Haiti” (Bill Quigley, “Why the US Owes Haiti Billions: The Briefest History”, Countercurrents, 17/01/2010).

Para um breve resumo, faltaria acrescentar o bloqueio americano aos recursos para a água, denunciado pelo Robert F. Kennedy Memorial Center:

“Além de ser a mais pobre nação do Hemisfério Ocidental, o Haiti tem também a pior água no mundo, estando em último lugar no ranking do Water Poverty Index. O Robert F. Kennedy Memorial Center divulgou documentos do Departamento do Tesouro dos EUA, de 4 de agosto de 2008, expondo ações politicamente motivadas pelas quais foram bloqueados empréstimos de US$ 146 milhões que o Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID) aprovou para o Haiti. O BID aprovou os empréstimos em julho de 1998, incluindo US$ 54 milhões para projetos urgentes de saneamento e necessidade de água. Entretanto, os documentos mostram que o BID e o staff do Departamento do Tesouro dos EUA buscaram meios de amarrar a liberação dos empréstimos a condições políticas que os líderes dos EUA queriam que o governo haitiano cumprisse. Esta intervenção foi uma violação direta da carta do BID” (V. Project Censored, “US Repression of Haiti Continues” e HP, 15/01/2010).

O Robert F. Kennedy Memorial Center enfatizou que “a água é a principal causa de mortalidade infantil e doenças nas crianças. O Haiti agora tem a mais alta taxa de mortalidade infantil do Hemisfério Ocidental [e] mais da metade de todas as mortes no Haiti foram devidas a doenças gastro-intestinais transmitidas através da água”.

Em artigo publicado em 1996 na revista Brecha, de Montevidéu, Eduardo Galeano, o autor de “As Veias Abertas da América Latina”, conta algumas histórias exemplares sobre o Haiti:

“Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhes, em Port-au-Prince, qual é o problema:

“- Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

“E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

“Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do CitiBank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações a estrangeiros. Então, Robert Lansing, secretário de Estado [do governo Wilson], justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem ‘uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização’. Um dos responsáveis pela invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: ‘Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses’”.

Mas, como ressalta Quigley, “o povo haitiano tem resistido ao poder econômico e militar dos EUA e de outros desde a sua independência. (....) É tempo da população americana se juntar aos haitianos e inverter o curso das relações EUA-Haiti. Esta breve história mostra porque é que os EUA devem Bilhões – com B maiúsculo - ao Haiti. A atual crise é uma oportunidade para a população americana tomar consciência da história do nosso país no que se refere ao domínio do Haiti e dar uma resposta deveras justa”.

O que demonstra que, além de sua bravura, o povo haitiano tem amigos até mesmo nos EUA - e entre os brancos dos EUA, como Quigley. É verdade que os haitianos já sabiam disso. Até porque, até hoje não teve horas que não fossem difíceis. Portanto, sabe reconhecer os amigos. E, sobretudo, sabe reconhecer os inimigos.

*Carlos Lopes é editor do Jornal Hora do Povo

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